Resenha: Amali - Jéssica Macedo

12 março 2018


Brasil 1824.
Amali nunca aceitou os rumos de sua vida. Arrancada do seio de sua família, foi vendida como escrava em um país desconhecido.
Com um espírito livre e questionador, resiste às imposições e injustiças, sofrendo as amarguras de uma luta silenciada pela opressão e violência.
Colocando em cheque a vida de um recluso barão do interior de Minas Gerais, que havia perdido mais do que se julgava capaz de suportar, Amali mostra toda a sua força, conquistando a própria alforria e lutando pela liberdade dos demais.


Edição: 1
Editora: Portal Editora
ISBN: B079MJNXDD
Ano: 2018
Páginas: 192


Oi, gente. Cá estou eu, aqui mais uma vez para falar sobre livros ruins. Esse, em especial, gerou muitas tretas há algumas semanas atrás, quando foi anunciado sua sinopse e lançamento.

Pra quem não costuma acompanhar o meio literário, aqui vai um resuminho do que aconteceu: com uma sinopse extremamente romantizada, com problemas de gramática e sentido também, a autora contou um pouco sobre a história do relacionamento entre Amali, uma escrava africana, e o barão Fernando, o seu dono. Como se não fosse o bastante, também incluiu em suas publicações que sua intenção é levar esse livro para as escolas e torná-lo paradidático para nossas crianças, mesmo com todos os defeitos apontados. E quando pessoas vieram reclamar sobre o conteúdo da história, a autora bloqueou todo mundo, apagou comentários, denunciou muita gente como spam e pediu/recebeu apoio de vários amiguinhos para ajudá-la a sair da treta como vítima. No fim, prometeu editar a sinopse, a capa e o título, como se eles fossem o único problema desse livro.


Mas, surpresa surpresa: NÃO É. O livro tem tantos problemas que se eu fosse apontar um por um passaria vários dias fazendo só isso, mas vou tentar listar alguns deles aqui para vocês.

Durante a treta no Facebook, muita gente veio reclamar sobre a péssima qualidade do livro, e eu preciso dizer que o problema é real. Em muitos trechos dá pra notar o Ctrl c + Ctrl v das primeiras páginas de resultados do Google, incluindo parágrafos com links para artigos da Wikipédia no meio do livro. Já em outros, notamos a falta de pesquisa e cuidado na hora da escrita: falta de sentido na cronologia (Ex: a esposa do barão já era uma criança durante a Revolução Francesa (1789), mas tem apenas uns 20 anos em 1822/1823, quando está no Brasil; além de anos da história se passando em menos de dois minutos de diálogo), costumes inseridos em épocas erradas, vestimentas incorretas, exceções sendo tornadas regras gerais, e informações reais jogadas de qualquer jeito, sem um contexto que as embase ou as explique. E falando sobre os acontecimentos reais citados no texto, devido aos erros históricos apontados durante a polêmica, a autora inseriu o seguinte aviso, para evitar quaisquer futuras reclamações:


Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Mas como ela não removeu nenhuma das infos históricas, ou alterou qualquer parte do livro para estar de acordo com o aviso, vou continuar julgando essa parte também. Segue o baile.

Vamos continuar a lista dos problemas, falando sobre o maior de todos eles: o enredo. Não listei os acontecimentos por ordem cronológica ou de importância, apenas fui lembrando e escrevendo, então pode parecer meio confuso eu ter começado por cenas finais, mas não desiste de mim, leitor. Vem comigo nessa análise.

— Pare, por favor, vai matá-lo!
— Mas, Amali… — Fernando ainda segurava com a mão esquerda o colarinho do feitor.
— Ele não fez nada; vosmicê o impediu.

Teve estupro sendo retratado como se fosse “nada demais”, uma vez que o grande homem branco salvador chegou antes que o agressor conseguisse penetrar a escrava. MAS ESTUPRO NÃO É SÓ PENETRAÇÃO, OK?

Tereza pegou Amali pelo braço e a empurrou contra o chão.
A jovem sentiu as unhas arranharem seu braço e uma dor nos joelhos que bateram contra o chão.
(...)
Tereza deu um chute na barriga de Amali, fazendo-a se encolher ainda mais com a dor do golpe. A moça sentiu o gosto de sangue em sua boca ao levar a mão no local ferido.
(...)
Tereza arrancou o colar do pescoço de Amali em um único puxão, cortando a pele fina e deixando uma marca vermelha.
(...)
— Minha irmã a machucou?
Amali fez que não.

Teve violência verbal e física sendo ignoradas em prol do amor do casal principal, com Amali sendo surrada pela cunhada e dizendo que está tudo ótimo e que não foi nada, uma vez que isso fez com que o barão acordasse do seu “coma” misterioso e inexplicável de vários dias, ocasionado por um tiro de raspão no abdômen. SIM, UM TIRO DE RASPÃO QUE DEIXOU ELE DESACORDADO POR VÁRIOS DIAS. A moça também sofre ameaças a torto e a direito, mas está tudo bem, porque o barão disse que iria protegê-la de todo o mal e fazer ela se sentir segura. Spoiler: ele não protege.

O trabalho não a aborrecia. Estava acostumada a dividir as tarefas com suas irmãs.

Teve trabalho escravo sendo equiparado ao ato de ajudar nas tarefas de casa, com a Amali dizendo que não vê problema em realizar tais obrigações. Por sinal, ela só trabalha quando quer. Teoricamente, ela é uma escrava com trabalho árduo de sol a sol, sem tempo para nem pra respirar, mas aparece em mais da metade das cenas fazendo vários nadas e tendo liberdade para ir banhar-se na hora que bem entender, sentar e admirar as estrelas ou a roseira do jardim, aprender a ler, ou simplesmente discutir algo com o barão.

— Vamos jantar, Thaya preparou um pequeno banquete para nós.
—  Não quero incomodá-lo.

Outra coisa estranha é o fato de em toda a fazenda só existirem duas mulheres: Amali e Thaya, uma senhora de idade avançada que já nasceu escrava e cuida do Fernando desde que ele era um bebê. Por causa disso, quando o barão toma conhecimento da presença da nova escrava, vemos a exploração da pobre Thaya causada pelo favoritismo da Amali: Thaya é obrigada a servir banquetes para o casal, preparar café e comida especialmente para a Amali sempre que o barão tá por perto, além de ter que ensinar à novata a “língua dos brancos” (que Amali aprende em pouquíssimos dias, mesmo não entendendo uma vírgula de nada quando chegou no Brasil), dividir sua própria cama/quarto com ela, etc enquanto ainda tem que cumprir com todas as suas obrigações apesar de sentir dores extremas ao realizá-las. É falado no livro que o barão a considera como uma segunda mãe, mas ele não se importa nem um pouco com o trabalho extra ou com a saúde dela em nenhum momento (todas as vezes que ele comenta sobre, foi uma outra pessoa quem iniciou o tópico e expôs o problema). 

Mas absurdo mesmo, é o fato dos escravos dizerem que o "senhorzin é um homem muito bom" e que eles tem sorte de trabalhar para ele. Escravos estes que sofrem durante todo o dia, são castigados a noite, vivem em péssimas condições, e são tratados como animais por todos os demais funcionários da fazenda; e, mesmo assim, obedecem as ordens de forma organizada e tranquila, acordando às cinco da manhã com o sino da fazenda e indo trabalhar sem nenhum tumulto ou reclamação, sem tentar fugir ou criar pânico, não apenas por medo de apanhar, mas também porque não veem motivo para fazer isso quando não sabem como voltar para casa ou melhorar sua situação (com o Chepas/Joaquim como única exceção, ainda que a autora se esforce em fazer do seu único personagem coerente o errado da história).

— Não encha a cabeça da Bela, Joaquim. Se quer fugir e ser perseguido pelo capitão do mato, vá sozinho. Ela é muito formosa para parar em um tronco. 

Na opinião dos escravos, Amali não deveria ir para o tronco não por ser mulher, ou por ser um ser humano e por isso não dever ser tratada de forma tão cruel, mas sim por ser MUITO BONITA. Como se beleza fosse critério para ser ou não maltratado naquela época.

E não vamos nos esquecer do tão falado relacionamento entre o barão e a escrava que, ao contrário de alguns boatos que circulam por aí, começa sim bem antes dela ser libertada. O casal tem vários encontrinhos inesperados onde rola um clima entre eles e trocam diversos carinhos no rosto EM PRATICAMENTE TODAS AS CENAS do livro. O barão, inclusive, se dispõe a ensinar a Amali a ler e fornece vestidos de seda para que a moça vista.

— Vamos começar pelas vogais. — Ele puxou o pequeno baú de escrita e com a pena escreveu todo o alfabeto para ela.
— Esse é o a. — Apontou. — É uma lembrança que aparece em quase todas as palavras.
— A...aaa… — Amali tombou a cabeça e ficou observando. — A…
— Isso, muito bem. — Fernando sorriu. — A próxima é um bê. A letra B.


DESDE QUANDO B É VOGAL? SE É PRA ENSINAR, ENSINA DIREITO.
Spoiler: E após ter aprendido ISSO, Amali vira professora de português para os trabalhadores da fazenda e vizinhos mais carentes. Esse trecho, inclusive, é a única menção da Amali aprendendo a ler no livro todo; simplesmente jogada ali e nunca mais mencionada. Assim como o idioma, ela aprendeu tudo em apenas uma cena.

— Vou providenciar sua passagem para que volte em segurança para a África.
(...)
— Está mandando-me embora?
— Não, Amali! Estou livrando-a da vida de escrava. Pode voltar para África, reencontrar os seus pais.
— Como vou fazer isso? Achou de onde eu vim?
— Não, mas vosmicê pode tentar. Não sei de qual povo vosmicê veio. Há muitos na África. Mas posso garantir que seja levada de volta com segurança e conforto.
— Largada à própria sorte, como Chepas? — O brilho nos olhos dela se apagou.
— Pensei que ficaria feliz… — Fernando abaixou o rosto e olhou para o chão.
— Se não pode garantir que eu encontre meus pais, por que eu ficaria?
(...)
— Ele a libertou?
— Acho que foi isso. Alforria, ele disse. Chamou de alforria.
— Oh, céus! - Thaya sentiu seu corpo cair sobre a cama.
— Eu não quis.

Outro absurdo do livro é Amali recusar sua alforria, uma vez que não faz ideia de onde veio, onde morava, ou qualquer outra informação que ajude a encontrar novamente seu povo, mesmo sendo filha de um grande guerreiro e líder da tribo (e mesmo assim, nem o nome da tribo, do povo, ou sequer o idioma deles é citado no livro). Ela é super inteligente a ponto de aprender idiomas, leitura e escrita com facilidade, mas não sabe nada sobre suas origens. Enquanto isso, os demais escravos trazidos no mesmo navio (homens) sabem de onde veio e desejam retornar. Chepas, por exemplo, é do Império do Congo e sonha em voltar lá, mas essa opção não é dada à ele, foi apenas para a "namoradinha" do barão. 

— Está deslumbrante, Bela.
—Venha, ajude-me a colocar esses enfeites no cabelo. — Sacudiu no ar uma presilha com topázios e brilhantes.
(...)
Fernando estava deslumbrado com a visão. Se ela já era linda suja e em trapos, vestida como uma princesa, sentiu-se contemplando uma obra de arte.

O ideal eurocêntrico de beleza também é imposto à personagem principal e ninguém viu nenhum problema nisso. Amali é ensinada desde pequena que deve cuidar de seus cabelos para ser considerada bonita (por sinal, ela tem cabelos ondulados/leves cachos perfeitos que são mantidos soltos e longos em todo o livro, mesmo durante a viagem no navio negreiro). Além do cabelo, também é dado a ela vestidos finos e elegantes, sapatos de salto e jóias diversas, e Thaya (mais uma vez) aparece a ajudando a se vestir e se pentear, tal qual os romances de época britânicos que estamos acostumadas a ler. E quando Amali reclama da dificuldade em usar salto, Fernando diz que ela terá tempo suficiente para aprender a usá-los, como se ela não tivesse a opção de simplesmente não utilizá-los mais.

Ainda sobre furos históricos, temos uma forçada no enredo para que o barão saia como vítima no livro. Todo o controle da fazenda (com exceção das finanças) fica nas mãos do Sebastião, como se não fossem necessárias assinaturas, dinheiro ou documentos do próprio senhor de engenho para coisas como registrar a compra/venda de escravos, novos materiais, mercadoria, etc. E para que o leitor possa acreditar nessa ladainha, de que o barão não sabia de absolutamente nada, a autora também mata a esposa dele e faz ele entrar em "depressão" causada por luto extremo. Ele se confina em casa e a autora diz que é uma dor tão grande que explica toda a irresponsabilidade, abandono e egoísmo do cara. Muito grande, mesmo comparada com a tortura física e psicológica que todos os escravos passavam. MAS NINGUÉM COM BOM SENSO ENGOLE ISSO, NÃO. "Tu" vem me dizer que em mais de um ano convivendo com as mesmas pessoas, com eles obedecendo suas ordens e totalmente submissos, aparecendo surrados e machucados, vestindo trapos fedorentos e rasgados, e ELE NUNCA NOTOU NADA DE ERRADO? Nunca notou todos dormindo amontoados numa senzala? Nunca notou os gritos e barulhos das chicotadas? ME POUPE, NÉ, AMORES?

Mais um momento absurdo pra vocês: depois de passar o livro inteiro convencendo o barão a aceitar sua nova aparência, dizendo que o importante é a beleza interior, etc etc, Amali magicamente cura todas as cicatrizes e feridas dele com umas plantas que ele tem na fazenda e que ELA ACHA (de olhômetro mesmo) que são iguais as que sua mãe usava na África. Ela, DO NADA, aproveita que ele está desacordado e esfrega uma substância desconhecida pelo rosto/mãos dele. Sem permissão, sem realizar testes pra ver se nada é venenoso (já que é quase 99% de chance de não serem as mesmas plantas), sem nem verificar com o médico se isso não pioraria a situação dele. Mas a autora tinha que ser fiel ao conto da Bela e a Fera em algum momento, não é mesmo? (facepalm eterno)

Também temos uma falta de lógica com relação a voz da mulher na sociedade machista: Em todos os diálogos do livro que a irmã do barão aparece, vemos o quanto os homens ignoram suas opiniões, como ela não tem moral nenhuma ou sequer consegue expressar seus ideais sem ser interrompida e calada por um dos homens presentes, como realmente acontecia naquela época. Então por que quando é a escrava recém-chegada todos prestam a maior atenção? Por que todos querem saber o que ela pensa e deixa ela se expressar à vontade? Logo a escrava, que teoricamente deveria ter menos voz ainda do que uma mulher rica, casada e da família. Não pode nem dar a desculpa por ela ser a primeira mulher a criar algum vínculo, porque temos a Thaya ali na fazenda por DÉCADAS e ninguém estava nem aí.

Por hoje, acho melhor eu encerrar por aqui, não é?


Resumindo para quem não teve paciência de ler tudo: o livro é muito ruim. Muito mesmo: mal escrito, mal revisado, mal planejado, faltou pesquisa e uma leitura crítica/sensível pesada em todo o texto. Teve romantização da escravidão, teve estupro sendo escrito apenas para enaltecer a visão do homem branco salvador, teve abusos físicos e psicológicos sendo tratados como "nada demais", teve escrava se apaixonando por seu dono e vivendo feliz para sempre com ele, etc. Se depois de tudo isso, você ainda tem vontade de ler, eu desejo é BOA SORTE.

Isso é tudo, pessoal!
Beijos e até a próxima.

PS: Sempre que pedirem um cafe, verifiquem se magicamente ele não vira chá por alguns minutos (dois parágrafos, para ser precisa). Segundo o livro, pode acontecer.

8 comentários:

  1. Raíssa mais legal ler tua resenha que o livro, kkkk
    Mas, olha é muito erro mesmo, em nome de deus, que livro mal preparado, mal tudo.
    Me choca ter tido tanta defesa em relação de uma história absurda e de uma obra tão mal escrita e mal revisada. É tanto erro que é até absurdo o pessoal tá pagando por isso.

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    1. Disappointed but not surprised. Pelo menos serviu pra fazer uma limpa nos livros que eu pretendia ler :)

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  2. menina eu terminei a leitura hj cedo. sinceramente eu tô até empacada na resenha de tanta coisa ruim que tem que apontar.
    faltou tato, faltou noção, faltou respeito, nossa faltou mt coisa nesse livro. eu tô sem chão de tão chocada que eu fiquei com essa leitura

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    1. Menina, eu tive que fazer uma lista (enquanto lia) de coisas que eu queria comentar na resenha, pra poder lembrar de tudo. Mas no final das contas, tive que escolher uns poucos pontos, ou essa resenha acabaria quase do tamanho do livro HAHHAHAHAHHA

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  3. Delícia de resenha! Vou compartilhar porque quem é guerreira de verdade merece.

    Eu não tive saco!

    Bjks

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    1. Obrigada! Menina, foi uma jornada difícil, viu? Eu devia ganhar até um oscar literário por não abandonar esse tipo de livro .q

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  4. Me diverte muito com a sua resenha Rai! Ainda não li e nem sei se pretendo ler, mas é tanto absurdo que você nem acredita.

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:) :( ;) :D :-/ :P :-O X( :7 B-) :-S :(( :)) :|
:-B ~X( L-) (:| =D7 @-) :-w 7:P \m/ :-q :-bd

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