Era manhã e Maria Padilha estava sentada em uma de suas 7 catacumbas, observando o pequeno fluxo de pessoas que circulavam pelo cemitério. Quando sentiu perto de si a presença de outro espírito.
— Salve dona Maria Padilha. - cumprimentou a chegada.
Seu rosto exibia a aparência de um crânio de um lado e do outro as belas feições de uma jovem mulher. Maria Padilha a reconheceu como a nova integrante da falange das Marias Caveira.
— Salve Maria Caveira. - Padilha respondeu amistosa - O que a traz até as minhas 7 catacumbas? O que tem achado do novo trabalho.
— Tem sido muito gratificante auxiliar espíritos em necessidade, mas às vezes algumas coisas ainda não me são muito claras. É inclusive por isso que vim ter com a senhora.
Padilha assentiu com a cabeça, estimulando a jovem a continuar.
— Ontem fui ao auxílio do espírito de uma mulher no umbral, mas nada pude fazer por ela. Apesar de muito necessitada, não consegui oferecer-lhe ajuda. Era como se ela me ignorasse, tão imersa estava em sua loucura. Isso nunca havia acontecido, então fui ter com o senhor João Caveira e ele me explicou que só podemos auxiliar um espírito que queira ser auxiliado. Porém, não entendi, como em tamanho desespero aquela moça não queria ser auxiliada?
Padilha a encarava com seu olhar pacífico, sorriu e assentiu com a cabeça e falou.
— Alguns espíritos não aceitam ajuda, pois ainda não perceberam que dela precisam. Tão imersas estão em seu próprio ego, que não reconhecem seus próprios erros.
— O senhor João Caveira me falou que aquela moça morreu, ao receber uma bala no lugar de uma protegida da senhora. Achei essa uma atitude tão altruísta, que não compreendi porque ela não mereceria ajuda. Por isso estou aqui. O senhor João me mandou procurá-la, pois a senhora me explicaria e isso ajudaria no meu trabalho.
Padilha encarou aquela moça e gargalhou, antes de falar.
— Ah, sim, me lembro dela, não faz muito tempo do seu desencarne. Mas, não se engane moça. Aquela mulher, não tomou a tal bala por altruísmo e sim por inveja.
— Por inveja? - Surpreendeu-se Maria Caveira - Nunca ouvi falar de ninguém tomar uma bala em lugar de outro por inveja.
Padilha gargalhou mais uma vez. Sua risada era doce e enchia o plano astral. Uma senhora encarnada que caminhava no cemitério sentiu um arrepio e exclamou: "Laroiê Maria Padilha!".
— Moça, você ainda é nova nesse trabalho espiritual, ainda verá muita coisa, daqui há algum tempo nada mais lhe surpreenderá.
Pois bem, vou lhe contar a história...
"Minha protegida se chama Carina nessa vida terrena, mas é um espírito antigo, já passou por muitas encarnações e reencarnou com algumas pendências a quitar. Porém, é um espírito evoluído e trabalhou muito no plano espiritual antes de partir para esse novo plano reencarnatório. É uma moça de temperamento forte, muitas vezes impetuosa, mas seu espírito guardou consigo muita empatia, tanta que às vezes ela demora para perceber as más intenções das outras pessoas, por mais que eu sopre em seus ouvidos.
A mulher que vaga no umbral se chamava Débora, também é um espírito antigo, mas não conseguiu seguir firme nos acordos feitos antes da sua reencarnação e mais uma vez se deixou levar para o caminho do Ego e da inveja.
Carina é uma jovem batalhadora, que apesar de suas lutas pessoais, vive bem e raramente mostra as pessoas quando as coisas andam mal. E isso atrai a cobiça de pessoas que acreditam que a grama do vizinho é mais verde. Débora era uma dessas pessoas. Dessa forma, ela aproximou-se de Carina através do local onde trabalhavam e passaram a ser amigas.
Porém, sua admiração ultrapassava os limites saudáveis e mesmo tendo uma boa vida, bons amigos, Débora passou a nutrir o desejo de ter o que Carina tinha. Isso não só no sentido de recursos, mas também de afetos.
Por mais que eu intuísse Carina e muitas vezes mandasse "recados" por amigos sobre o caráter e as más intenções de Débora, ela achava que era paranóia e seguia com a amizade.
Elas se uniram e abriram uma empresa de moda que trouxe bons frutos para ambas, mas Débora nunca estava satisfeita. Desviava dinheiro da empresa escondido. Roubava joias de Carina que por não ser tão ligada a coisas materiais nem percebia, ou achava que tinha perdido.
Carina atraia muita atenção masculina, tinha muitos pretendentes, mas era apaixonada por um homem só, porém esse relacionamento era fadado a não dar certo. Havia sido acordado antes deles reencarnaram que nessa encarnação o elo de dependência emocional entre os dois espíritos deveria ser rompido.
Dessa forma, Carina era um espírito livre, flertava e namorava muitos homens, mas não se prendia a nenhum.
Débora também tinha seus pretendentes, mas invejava Carina, pois acreditava que os dela, eram mais generosos. E isso foi o estopim para a sua tragédia.
Um dos pretendentes de Carina era casado com uma mulher mais velha, muito rica e ciumenta. Esse, por não ter seus avanços correspondidos, vivia enchendo Carina de mimos. Flores, bombons, perfumes...
E qual mulher, não gosta de ser mimada, não é? Até eu do lado de cá, amo quando meus filhos me trazem mimos.
Carina aceitava a todos e sempre comentava com as amigas. Certo dia os presentes começaram a aumentar de valor e o homem passou a presentear Carina com joias caras, o erro que fez sua mulher descobrir e odiar a rival.
A esposa, sentindo-se traída, teceu um plano para se livrar da rival, contratou um assassino de aluguel. Esse iria até à empresa se passando por um entregador com mais um presente e atiraria a queima-roupa no peito da moça.
Eu, que como protetora a tudo assistia, avaliando a lei do carma e do merecimento, no mal fadado dia acometi Carina com um mal-estar, para que essa não estivesse no escritório quando o marginal chegasse.
O que eu não esperava, visto que ao contrário do que muitos pensam não sou onisciente, era que Débora estando sozinha no escritório, quando o malfeitor chegou portando uma caixa que aparentava conter um colar caro, apresentou-se como Carina para recebê-lo.
Recebendo assim a bala no lugar da 'amiga'."
Maria Caveira, que ouvia toda história em silêncio, aparentava estar em choque com o relato.
— Mas, e Débora não tinha uma protetora? - Perguntou
— Sim - Padilha Respondeu - Débora reencarnou aos cuidados de uma Maria Farrapo, mas a cada vez que ela se desencaminhava do seu plano reencarnatório, ela ia perdendo a ligação com sua protetora. E farrapo nada pode fazer. Entenda Maria Caveira, nenhuma de nós pode interferir no livre arbítrio dos nossos protegidos. Tudo é questão de merecimento. Eu pude afastar Carina de tal situação. Pois, ela mantinha uma forte ligação comigo. Mesmo não fazendo parte de nenhuma religião espiritualista, mantinha um caminho íntegro, era caridosa com os próximos e orava aos seus protetores. Tudo isso fortalecia nossa ligação. Enquanto Débora percorreu o caminho oposto e acabou por romper a ligação que tinha com seus guardiões, seguindo por vontade própria o caminho que a levou a desencarnar.
— Mas, e após a morte, ela não culpou Carina? - Perguntou Maria Caveira.
— Oh, sim. Muito. No início ela não aceitava haver desencarnado, ficou presa ao seu corpo físico. Não aceitou a ajuda dos seus guias espirituais e passou por todo o processo do seu velório, enterro, até ver o seu corpo se decompor. Acredito que foi tal coisa que perturbou ainda mais o seu espírito, o lançando em desespero. Quando aceitou que sua morte era certa, culpou Carina por tudo que havia perdido e passou então a persegui-la no intuito de obsedia-la até que ela tirasse a própria vida.
Mas, lá estava eu! Maria Padilha das 7 Catacumbas. Não permiti que ela se aproximasse da minha protegida, e a afastei sempre que ela tentava se acoplar a matéria de Carina, quando essa deixava sua frequência baixar.
Ofereci ajuda ao espírito perturbado de Débora muitas vezes, mas essa não acreditava precisar de ajuda, queria vingança. Achava que Carina era culpada de sua morte e logo ela teria direito de ceifar também a sua vida.
Mas, culpa nenhuma carina teve, a culpa de sua morte foi sua própria inveja. E apenas quando ela perceber isso, conseguirá ser resgatada.
Após muito tempo afastando o espírito de Débora do de Carina e oferecendo-lhe ajuda que sempre era negada, acabei por levá-la para o umbral, onde não poderá mais causar danos a ninguém.
Maria Caveira assentiu como se compreendesse o que lhe foi dito, mas como todo aprendiz ainda tinha perguntas.
— Essa situação gerou um Carma entre Débora e Carina? Elas voltarão juntas numa próxima encarnação para resolver pendências? - Perguntou.
— Não. - Maria Padilha respondeu de pronto. - Carina em momento algum alimentou pensamentos negativos contra Débora. Nem mesmo depois de sua morte e descobrir os desvios que Débora fazia na empresa, ela alimentou mágoas. Sendo assim, foi como se Débora houvesse cavado a sua própria cova e se enterrado nela.
O carma que ela adquiriu foi com ela mesma.
Maria Caveira balançou a cabeça mostrando a sua compreensão da história. Sorriu para Dona Maria Padilha e agradeceu pelo ensinamento.
Maria Padilha gargalhou mais uma vez, fazendo outro caminhante do cemitério se arrepiar, mas esse exclamou um "sangue de Cristo tem poder" e saiu andando rápido.
Maria Caveira riu baixinho. E Padilha disse:
— Moça, você precisa aprender a gargalhar. É divertido e afasta as energias negativas.
Voltando a soltar sua bela gargalhada.
Autoria: Kris Monneska (Mantenha os créditos)
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Nem sempre aquilo que perdemos é uma perda de fato. Às vezes é um livramento. É um invejoso tomando a bala por você.
Da mesma forma que nem tudo que reluz é ouro, cuidado para não tomar uma bala que não é para você por inveja. Por querer aquilo que o outro tem.